O livro é a primeira produção de história íntima sobre o fenômeno de insurgência social de maior apelo popular do Brasil. Sem perda do caráter epidérmico de banditismo, Pernambucano nos mostra uma tradição brasileira de insurgência recorrente, irmã do levante indígena, do quilombo e da revolta social. E conclui que nos veio do fenômeno a própria marca visual da região Nordeste: não mais que uma estilização da meia-lua com estrela do arrebitado da aba do chapéu de couro dos velhos capitães de cangaço.
“Habitando um meio cinzento e pobre”, conclui Pernambucano, “o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza. Satisfez seu anseio de arte, dando vazão aos motivos profundos do arcaico brasileiro. E viveu sem lei nem rei quase em nossos dias, deitando uma ponte sobre cinco séculos de história. Foi o último a fazê-lo com tanto orgulho. Com tanta cor. Com tanta festa”.
“Estrelas de couro, o livro que eu gostaria de ter escrito” – diz Ariano Suassuna
Estrelas de couro – a estética do cangaço – 2010 – 112 anos de nascimento de Virgulino Ferreira, o Lampião
A obra traz 300 imagens do cangaço e 160 fotos de objetos de uso pessoal dos cangaceiros, resultado de um trabalho que Mello começou em 1997. No prefácio do livro, o historiador teve o privilégio de receber elogios do octogenário Ariano Suassuna, que explicita a vontade de ser o autor do livro.
Ao contrário de qualquer bandido ou criminoso, que deseja ocultar sua identidade, os cangaceiros usaram roupas que chegaram a beirar o carnavalesco – termo usado pela imprensa em 1928. Eram nômades, o que os “forçava” a levar tudo o que precisavam pelo corpo, em dois bornais, para viagens curtas, e quatro, para as mais longas. Eles quase proclamaram, a partir do traje, a condição de cangaceiros com muito orgulho. “Estes homens não eram puramente criminosos, tinham o pudor de se insurgir contra valores coloniais que não desejavam aceitar. A condição de insurgentes é matéria-prima para o surgimento de uma expressão de arte na qual estes ideais precisaram se materializar de modo visível”, diz Mello.
A moda do cangaço deixou raízes. O chapéu meia-lua de couro, com uma estrela no meio, lançado por Virgulino, hoje é o símbolo do nordeste brasileiro. O chapéu, que tem a aba virada naturalmente para cima quando se cavalga, durante o período do cangaço, serviu de suporte de arte (na aba iam alguns enfeites) e também de alerta: nenhum cangaceiro poderia correr o risco de ser surpreendido em uma emboscada, por isso não poderia andar com a aba abaixada escondendo os olhos.
A conta bancária também era carregada junto ao corpo: moedas de ouro 22 quilates (que chegavam a ser vermelhas e tinham quatro centímetros de diâmetro) ficavam penduradas na testeira do chapéu, assim como anéis (Lampião morreu com 30 alianças) que serviam como uma espécie de aprisilhamento do lenço do pescoço, chamado de jabiraca. As calças tiveram pelo menos três modelos. Havia ainda uma perneira de couro para proteger as canelas dos espinhos e a alpercata (espécie de chinelo) de couro que era usada com meia. “Gilberto Freire, em seu livro Casa Grande e Senzala, chamou esta arte de projeção do homem, porque é uma arte que está sobre este próprio indivíduo ou é como se fosse um prolongamento dele”, explica Mello.
Um padre, conversando com os cangaceiros em 1929, chegou a ficar impressionado com a mobilidade deles: após uma espécie de acrobacia, não derrubaram nenhum dos objetos que carregavam. “Os bornais [tipo de bolsa] tinham dentro carne seca, farinha, rapadura e, para não caírem facilmente, ficavam presos. Uma alça de couro passava a três dedos abaixo do mamilo e prendia as alças laterais dos bornais. Era uma estrutura funcional que permitia aos cangaceiros combater e se embolar pelo chão durante um tiroteio ou briga sem que nenhuma das peças se desprendesse”, explica Mello.
A roupa também era uma espécie de blindagem mítica. Funcionava como um amuleto da sorte e de defesa. Quando um cangaceiro chegava em uma casa, por exemplo, a vítima do assalto não o via com bons olhos, odiava este homem, por isso os amuletos serviam como neutralizadores do mau-olhado.
Os amuletos da sorte dos cangaceiros têm origem na antiguidade e eles poderiam usar estes símbolos da maneira que bem entendessem, como expressão. Alguns chegavam a ter o signo de salomão por todo o corpo. Ele é uma estrela de seis pontas – símbolo de Israel – e significa proteção. Algumas destas estrelas sofreram alterações e poderiam aparecer bordadas nos bornais. Normalmente os cangaceiros, na composição individual, adotaram as estrelas de quatro, seis ou oito pontas.
A flor-de-lis era o símbolo de pureza e também foi usada como proteção. Havia ainda a cruz de malta – símbolo das ordens militares e religiosas portuguesas – da Ordem de Cristo e da Ordem de Santiago que, inclusive, financiaram a vinda de algumas caravelas ao Brasil. E, por último, a cruz “oito contínuo deitado”.
Verdadeiros estilistas: A costura caracteriza o homem primitivo e, ao invés de se pensar em feminismo quando se vê um homem costurando, é preciso olhar mais para a questão do arcaísmo. O indivíduo tropeiro viajava com burros levando cargas como hoje fazem os caminhões. No meio do caminho poderia perder o botão da braguilha, por isso deveria saber costurar. Já o bordado era algo para os mais privilegiados e foi um dos requisitos para os homens que queriam se tornar chefes dos subgrupos do cangaço: deveriam saber bordar e repassar o ensinamento ao grupo. Foi com Lampião que os cangaceiros passaram a usar roupas mais requintadas, com bornais forrados de bordado a tal ponto que o tecido desaparecia debaixo das linhas coloridas.
Título: Estrelas de couro: a estética do cangaço
Autor: Frederico Pernambucano de Mello
Prefácio: Ariano Suassuna
Gênero: História/Cangaço e cangaceiros/ Usos e costumes/ Ensaio interdisciplinar
ISBN: 978-85-7531-324-4
Formato: 23 X 30 cm, capa dura, com mais de 300 imagens
Páginas: 258
preço: R$ 150,00
Escrituras Editora
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